segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O jogo


Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na Avenida Central
Mas as pessoas na sala de jantar
Estão ocupadas em nascer e morrer.
(Caetano Veloso e Gilberto Gil - Panis et circenses)



Gostava de brincar com facas.
Espetar, arranhar, furar, cravar, torcer.
Em si e nos outros.

Quando feria alguém, não doía, óbvio.
Às vezes um pequeno incômodo em ver o outro agonizar.
Quando era em si, doía.
Tanto e tantas vezes que foi se acostumando,
até que já nem doía mais.

Um dia, esfaqueou-se antes.
Não doeu – na hora.
A ferida inflamou.
A dor foi ficando insuportável.

Mas curou.
Curou porque a carne era forte e a enfermeira era boa.
Curou e aprontou-se de novo para a brincadeira.

E as pessoas na sala de jantar continuaram jantando e jantando.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A ponte



A grandeza do homem é ser ele uma ponte, 
e não uma meta; 
o que se pode amar no homem 
é ser ele uma transição e um ocaso.

Nietzsche - Assim falou Zaratustra, I,4



Num belo dia de outono, passeva eu pelo bosque das incertezas da minha vida, quando encontrei um trilha desconhecida, um caminho estreito, com mata fechada, mas cheio de flores lindas e frutas doces. Segui por ele, tentada, não resisti à doçura e à suculência daquelas frutas.

Despois que o descobri, não pude deixar de voltar. E todos os dias eu ia até ele, tirando o mato, as ervas daninhas, os espinhos. Nos entanto, por mais que eu avançasse, e fosse cortando os cipós que se atravessavam e tirando todas as pedras daquela trilha, eu nunca chegava ao final, onde deveria haver um lugar calmo e ensolarado. Mas não desisti, pois a cada furo de espinho ou tropeção numa pedra, eu comia mais um daqueles frutos doces e viciantes.

Até que um dia, veio uma tempestade de inverno e fechou de vez o caminho. Derrubou árvores, fez desmoronar montanhas, encheu de lama os frutos e o frio matou todas as flores. Foram dias duros, pois depois de provar tamanha delícia, eu não conseguia mais me satisfazer com nada.
Não tive mais coragem de voltar ao início da trilha. E em dias de primavera, eu ainda sentia à distância o perfume doce daquela tentação.

Mas o tempo é o descanso da alma. Fui provando outros sabores, descobrindo outras comidas e conhecendo outras flores. A memória angustiante daquela via mágica foi, aos poucos, ficando mais suave, até se tornar apenas uma lembrança disforme. E o verão chegou e se foi, e o caminho já não me tentava mais.

Até que no outono seguinte, encontrei a trilha totalmente limpa e aberta. Iluminada com tochas de fogo, enfeitada com pedras coloridas, as flores mais vivas do que nunca, os frutos caindo pelo chão de tão maduros, os espinhos e pedregulhos tinham sumido. Parecia um sonho! Tudo ali me esperando, me convidando.

Eu entrei desconfiada. Mas fui. E à medida que eu avançava, notava que o caminho ficava ainda mais bonito à minha frente.

Mas eu andava sempre olhando pra trás. A doçura das frutas agora me parecia enjoativa e o cheiro das flores tinha se tornado demasiado forte. Eu seguia. E mesmo percebendo que chegava a algum lugar, não conseguia enxergar direito aonde estava indo, pois quanto mais eu avançava, mais a minha visão embaçava, e o sabor daquelas frutas me causava sintomas estranhos - eu as saboreava avidamente, mas a sensação seguinte era de náusea. E os arbustos de flores eram cada vez maiores e sufocantes, causando maravilha e medo. Não suportei e resolvi voltar. Dei meia volta e saí correndo sem olhar pra trás. Senti-me aliviada ao sair daquela trilha.

Só que pouco tempo depois a lembrança daquelas delícias me atormentavam novamente, dia e noite, invadindo os meus sonhos, me despertando antes da hora. E eu voltei. E a trilha continuava aberta. Um pouco de grama alta, mas nada que impedisse a passagem.

E novamente eu segui a trilha, e novamente eu olhava para trás atormentada. E o outono se passou entre minhas entradas e saídas daquele caminho magnífico e aterrorizante. 

Porém, a cada vez que eu voltava, a grama estava mais alta, e o mato mais bruto. Começavam de novo a aparecer espinhos e pedregulhos. E eu nada fiz para tirá-los do caminho.

Até que, de uma hora pra outra, o caminho se fechou por completo.
E eu fico aqui, desesperada por tentar abri-lo novamente, mas me controlando, porque sei, que mesmo que eu consiga seguir por ele até uma parte, nunca conseguirei chegar até o fim.