domingo, 15 de novembro de 2009

O que esperar de um outono senão um inverno?


(Conto de ficção escrito originalmente em outubro de 2008)


Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

(Pablo Neruda)


Encontrou a peça na prateleira mais alta, aquela onde se guardam apenas as roupas que não se usam mais e acabamos guardando por achar que um dia ainda vamos usar. Tirou com cuidado do meio da pilha. Desdobrou. Love will tear us apart. Pensava que nunca mais a procuraria. Mas, no íntimo, ela havia alimentado por todo o tempo a esperança daquela oportunidade. Cheirou o tecido macio. Cheiro de armário. Lavou à mão, com cuidado. Secou à sombra, para não desbotar. Dali duas noites se desfaria dela para sempre.


Noite de sábado. Apartamento.
Ela chora. Discutem. Por que ele não entendia? A vida não precisava ser assim um sistema logístico com datas e horários programados num calendário mensal. Por que nunca faziam nada divertido? Ou... nada que não fosse divertido apenas para ele? O fato de terem tido um bebê sem planejar não tinha acabado com a vida deles. Tinham uma vida confortável, talvez não tanto como a visão limitada burguesa dele gostaria, mas... quantas pessoas conseguem realizar tudo o que querem? Ele não entendia que a vida é feita de buscas eternas e de momentos efêmeros. Assim, vivia num limbo, entre o passado e o futuro. A desculpa era sempre a falta de dinheiro. Mas não precisamos gastar muito. Por que tu tem que trabalhar até no sábado à noite? Tu nunca sai da frente desse lcd widescreen vinte polegadas. Será que não podemos ao menos pegar um DVD pra assistir?
Ela se atira no sofá. Deseja Paris, Londres, Nova York, um cosmopolitan. Porque ele tinha se tornado essa pessoa? Era tão divertido quando namoravam, mesmo nos primeiro anos de vida a dois, com bebê e tudo, ele não era tão infeliz.
O telefone. Oim, beibe! Tudo? Ai, vamos. Tem uma. Escuta. Ai, para de te fazer. Vai ser bafo! Tá, beijo, espero, beijo.
Sair, abalar-se dali. Pelo menos ela tinha liberdade pra isso, mas não sabia até que ponto gostava. Nem ciúme ele tinha. Será que ele acha que eu não pego ninguém? Será que eu sou tão bagulho? Não, não sou. Vou me arrumar. Maquiagem. Disfarça aí as manchas, as rugas. Que ruga que nada, amigam! Pra trinta e dois tá ótima. Ninguém lhe dava trinta e dois. No banheiro, No I won’t sit nice and be quiet. O verso martelando. Apropriado ao momento. Antes de sair, anota no braço, com canetinha, como se fosse uma tatuagem.



Posto de gasolina, conveniências. O mesmo de sempre. Olhou pela janela do carro e viu o contorno, fumando, em pé, à meia-luz vermelha do neon Marlboro. Parou ao lado, estômago em chamas, não sabia como chegara até ali.
Oi. Tudo bem? Onde vamos? Onde podemos conversar? Então vamos estacionar ali mesmo, tem pouca luz, a gente fecha o vidro do carro e. Bom, tu sabe que eu casei, né? De papel passado e tudo. Mas não sei, não tô feliz. Tenho pensado muito em ti.
Pontada no fígado.
Trouxe minha camiseta? Eu pedi pra tu trazer porque queria ela pra me lembrar de ti. Sim, sei que era minha, mas sabe, na nossa última noite, tu usou ela, eu lembro, pra dormir. Eu sei, eu sei, não vamos falar sobre isso, pensei que tu nem ia aceitar falar comigo. A camiseta foi na verdade um pretexto para.


Cerveja, música, Helinha, minha filha, larga desse copo! Ela logo começa a se esquecer do filme que queria ver, do jantar a dois que não aconteceu, do drama que enfrentou com o menino para que deixasse papai e mamãe sozinhos. Ai, amiga, como tu tá linda!!!! Tá magra, perfeita!!
Sim, amigo gay é terapia.
Cerveja, cigarro, Because we are you’re friends, you’ll never be alone again.
Ai, vamos que mais tarde tem muita fila.
Entra se sentindo estranha. Da última vez que foi àquele inferninho, acabou numa cama alheia. Sim, ela procurava emoção. Casamento mesmo, não teve. Ele nunca quis casar de fato e ela sempre bancava a durona-moderna-aliança-é-coisa-ultrapassada, mas no fundo sonhava com o vestido de noiva estilo anos 20, com chapéu-coco branco e redinha sobre os olhos e uma lua de mel na serra, bem piegas.
As poucas luzes do lugar, a fumaça e a música alta dão impressão de fim do mundo. Tentou não se perder “dasamiga”. Cerveja, vodka, cigarro, baseado... Madonna, Peaches... Na fila do banheiro, Sabia que tu é a garota mais linda que eu vi nesse lugar?



Não precisava dizer. Ela sabia que a camiseta era pretexto. Óbvio que a camiseta era pretexto. De repente, a mão na perna. Soco no rim. Sabe, tenho pensado em ti direto, tipo. Nas nossas noites. Nunca foi o mesmo com ninguém. Sei que foi culpa minha, eu não tinha maturidade pra encarar aquela situação, era muita confusão pra minha cabeça. Nossa diferença de idade, tu sempre foi tão. Nada. Posso te pedir um beijo?
As mãos crisparam-se. Por que tinha topado aquele encontro? Logo lembrou por que e respirou fundo. Vamos sair daqui. Tu quer mesmo ficar comigo hoje? Então vamos.


Aquela frase era a mais clichê que poderia haver, mas no estado em que ela estava – complexo, frustração, carência, desejo de vingança – era a melhor que poderia ter ouvido.
Aprecia o figurino – pois era estilosa e gostava de estilosos. Love will tear us apart. Adoro Joy Division.
Mas era uma situação inusitada, mesmo para ela, super-moderna-cabeça-aberta. Dar uma volta? Olha, tô com uns amigos. Vamos lá dançar um pouco. Everybody’s gonna love today, love today, love today. I’ve been fighting... for so long, hiding tears just to carry on, but now, but now, it’s gone away.
Girava em volta dela aquele corpo, cheio de uma juventude que ela já nem lembrava. I’m a bitch, bitch, bitch, I’m a rabbit on heat. I look so glow. There’s no shame! Ai, vamos lá no lounge. Quantos anos tu tem? Dezoito? Choque. Aparentava uns vinte e dois ao menos. A cabeça rodando, a música penetrando, a raiva desejando, o desejo gritando, tudo o que a compunha e movia naquele momento a levaram para o início do fim da tranqüilidade que ela nem sabia que tinha. Em cinco minutos estava apertando seios. E que bom que era. Pele macia, lips like sugar, sugar kisses, sem barba estilo lixa, um cheiro de nem sei que de maquiagem com perfume com suor de bebê. Vamos pegar uma ceva. Observa-a no bar. Shortinho. Teve medo do que sentiu entre as pernas.
Dia amanhecendo. Vou te procurar. Não acreditou. Nunca a procuravam no outro dia. Era casada e não escondia. Melhor assim, mas sempre acabava esperando conhecer alguém que se dispusesse a, ao menos, conversar. Falar de música, literatura.



Rodavam. There's a ghost in me. Who wants to say I'm sorry. Doesn't mean I'm sorry. Onde vamos? Tem alguma ideia? Ela não queria sugerir o motel, sabia que receberia a sugestão da outra. Um minuto de silêncio, a música termina. Vamos pra um motel. A afirmação seca e concisa fez com que ela trocasse de pista rapidamente procurando a direção da rodovia.


Domingo. Meio-dia. Orkut. Oin..chegou bem em casa?
Segunda. A cabeça é uma gaveta desarrumada. O trabalho é uma cruz. As pessoas são ogros. Tem vontade de enlouquecer e vomitar tudo o que pensa sobre os funcionariozinhos-públicos-classe-média-losers-recalcados-moralistas que são seus colegas de trabalho. Rói todas as unhas vermelhas e fica com um pedaço de esmalte preso na garganta. Como num delírio, apenas aqueles lábios de morfina, aquele cheiro de último desejo. Vou lá. Sei onde é.
Ombros duros de tensão. Através da vitrine, flores artificiais, quadros para cozinhas classe-media-querendo-ser-alta, cachepôs, leques, velas, tudo desequilibrado entre si e oscilando entre o kitch e o brega mesmo. Ela era a única coisa realmente bonita ali. Estava sentada de cabeça baixa atrás do balcão. A uns seis passos de distância, aquele cheiro de overdose já espancava a face tensa da mulher, que não tinha noção de estar se atirando num precipício.



O mesmo da primeira vez. A entrada sóbria com bouganvilleas subindo pelas laterais, discretas e aconchegantes. Dentro, decoração comum, o quarto simples, limpo, com garagem individual, o cheiro de amaciante. Sentaram-se lado a lado na beira da cama. O cheiro de dor. Os dedos procuraram o pescoço que procurou a boca que procurou outra boca que procurou um seio que procurou a mão que procurou.


Exatamente um outono – em resumo, (de)gradação e metáfora.
A sós, pela primeira vez, a mulher e a garota. Enfia os dedos por entre o cabelo e alcança a nuca que se contorce. Marte, Vênus, o Céu, o Inferno.
(...)
À janela do carro, Sou tua agora. Só tua, mesmo que tu não queira.
Garotinhas não raciocinam.
Overdose de adrenalina. Calma, beibe, Tu não faz ideia. Não tem noção.
Mensagens, músicas quero ficar no teu corpo feito tatuagem, poemas, simbolismos, simbioses, simultaneidades, suores, tremores, Eu te amo, tu é a mulher da minha vida! entre lágrimas de animalzinho domesticado. Calma, menine, tu só tem dezoito. Vai amar e desamar um monte de vezes. É assim mesmo. Daqui um mês acaba a emoção, é a vida. Não, menine, não faz beiço. Claro que eu acredito, amorzinho, não chora, só que eu sei como essas coisas são. Para, menine, tira esse emo aí do som que tu. Tu tá morrendo por mim agora, mas isso passa. É normal na tua idade, só que pra mim, tipo, eu já passei dessa fase, então. Não, menine, não tô te chamando de pirralha, não chora. Eu gosto do teu emo, mas tu tem que aprender a sofisticar o ouvidinho, Billie Holiday também é legal.
Difícil contentar.
Olha, menine, hoje não vai dar, tá complicado, tem passeio da escolinha amanhã, tenho que entregar um artigo pra ontem. Não, menine, não dormi mais com ele. Juro. Tô dormindo no sofá, mas tá foda. Fugir? Pra onde, menine? Não posso, tu sabe, tu sempre soube. Eu sei, sei, também preciso de ti, também penso em ti toda hora, mas calma, não posso me jogar assim. Daqui a pouco tu enjoa e eu me fodo. Sim, eu acredito no teu amor, já falamos sobre isso, tu tem que entender que tu tá numa fase de descoberta e.
Com o passar dos dias, o que era doce foi ficando amargo.
See you at the bitter end.
Olha, é muita pressão pra eu suportar, tu não tem noção, não tô agüentando, não dá mais. Tu tem que entender que não é futuro. Tu logo vai superar, tu é jovem. Uma hora ou outra acontece. Eu preciso me concentrar na minha vida, nos meus compromissos, preciso ganhar mais dinheiro e tu tem que amadurecer. Não dá pra continuar assim.
Na hora de sair, a mulher orgulhou-se de sua frieza e determinação. Saiu sem olhar pra trás. Na calçada do prédio, esperou ansiosa a chegada da tranqüilidade da família. Uma farsa. Só até o próximo sábado.
Eu te amo. Morro por ti. Faço qualquer coisa por ti. Sabe, não consigo ficar em casa te imaginando com ele, morando com ele. Diz pra mim, vai, diz pra mim que a gente vai morar juntas. Promete, vai, promete que não vai me deixar. Promete, vai, jura.
Não sabia mais o que pensar o que sentir. Via-a como um cachorrinho muito fofo e caro, mendigando, pedindo, sentia um misto de amor e pena, uma vontade de cuidar, de amar aquela criaturinha tão frágil. E era tão linda e aquele cheiro.
Contou tudo a ele. E ele sofreu, ...por um dia. Apenas pediu a ela que não saísse de casa, pois tinham responsabilidades a cuidarem juntos. Em duas semanas ele tinha outra pessoa. Mas eu amo é tu, tô com ela só pra não ficar carente. E ela sabia que era verdade, conhecia bem aquele homem.
E os sábados seguiram entre festas, msn, orkut, lojas de conveniência, amizades cúmplices, esconderijos, juras de amor, sexo incrível, bafos, sangue, álcool, lágrimas, ciúmes, mentiras, ansiedade, infantilidade, disputa de egos, desconfiança, doença, nervosismo, raiva, inveja, falta de tempo, destempero, choque de gerações, culpa, tristeza, impotência, fraqueza. Frio. Começava o inverno. Tinham combinado de viajarem juntas. Vendeu a alma ao diabo por esse momento. Comprou as passagens.
Na noite anterior, Me perdoa. Não vou contigo. Não posso mais. Não podemos mais.
Como assim, não podia, não podíamos? E tudo que tinha prometido? Nunca pedi nada, prometeu porque quis! Quis gritar, quis chamá-la de vadiazinha-infame-teenager-filha-da-puta. Quis dizer, Olha o que tu fez comigo? Era tudo mentira? Pra quê?Mas apenas: tudo bem, melhor assim.
Esperou que voltasse atrás. Não voltou.
E a mulher perdeu pra garotinha.
Foi ao inferno e voltou. As queimaduras foram profundas.

Juntou todas as cartinhas com coraçõezinhos e mimimis, CDs, bichinhos. Atirou ao fogo. Foi quando se lembrou da camiseta baby-look preta. Joy Division. Love will tear us apart. Na última noite em que estiveram juntas, acabara ficando com o último frio na espinha daquela montanha russa. Procurou no armário. Ainda estava com aquele cheiro de. Guardou na parte mais alta, aquela onde se guardam apenas as roupas que não se usam mais e acabamos guardando por achar que um dia ainda vamos usar. Quem sabe um dia devolveria.



Contemplou-a dormindo. Que imagem. Lembrou de quantas vezes tinha ficado a admirá-la assim, indefesa. Cheirou pela última vez aquele cheiro de jogue-se no poço. Passou de leve a mão pela curva daquele corpo, pelas espáduas. Vestiu-se sem ruído, tirou uma nota de cinqüenta da bolsa, deixou sobre a cama, no lugar de onde esteve deitada, junto com a camiseta. Pagou a conta do motel e foi embora. I want to hold you close. Soft breasts, beating heart. As I whisper in your ear. I want to fucking tear you apart.

2 comentários: